Alteração pretendida pelo Ministério do Meio Ambiente põe em perigo um dos maiores patrimônios naturais do Brasil.
–
OBSERVATÓRIO DO CÓDIGO FLORESTAL
REDE DE ONGS DA MATA ATLÂNTICA
MOVIMENTO MAIS FLORESTAS PRA SP*
Segunda-feira, 6 de julho de 2020, 9h34.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA) encaminhou para a Casa Civil da Presidência da República uma proposta de revisão do Decreto 6.660/2008, que regulamentou a Lei da Mata Atlântica, de 2006. Em síntese, o texto prevê a exclusão de várias formações vegetacionais contempladas no Mapa da Área de Aplicação da Lei, editado pelo IBGE, além de reduzir a participação do Ibama na análise dos pedidos de supressão de vegetação no bioma.
A pretensa “agilização” das etapas de licenciamento favorece principalmente empreendimentos habitacionais e industriais, processo que é de responsabilidade dos órgãos estaduais de meio ambiente.
Mas a ideia de mudar os limites de aplicação da Lei da Mata Atlântica tem um impacto muito maior na aplicação da Lei da Proteção da Vegetação Nativa, a 12.651/2012 (conhecida como o novo Código Florestal) em toda a área do Bioma no Brasil.
A Mata Atlântica é composta por diferentes formações florestais nativas e ecossistemas associados, com diferentes características, como florestas ombrófilas, estacionais, mangues, restingas. A Lei da Mata Atlântica inclui um Mapa da Área de Aplicação, que adota os mapas de Vegetação e de Biomas do IBGE como referência, a partir de pormenorização estabelecida no Decreto 6.660, em perfeita conformidade com o que determina a Lei.
Contudo, a proposta do MMA retira do Mapa da Área de Aplicação várias destas formações, como os campos salinos e áreas aluviais (formações junto ao litoral, rios e lagos), refúgios vegetacionais (ou comunidades relíquia, como campos de altitude), vegetação nativa das ilhas costeiras e oceânicas e áreas de tensão ecológica.
Mas o que isso muda na prática?
A diminuição de proteção da vegetação nas ilhas costeiras e oceânicas poderá atender a interesses imediatos de expansão de empreendimentos imobiliários e turísticos, contribuindo assim para degradação do próprio patrimônio natural que fomenta e sustenta essas atividades. Ilhas costeiras e oceânicas são espaços particularmente influenciados pelo contato com o Oceano Atlântico e, em vários casos, representam espaços amplos com importantes remanescentes de vegetação.
Outro risco iminente da alteração citada recai sobre as áreas denominadas de tensão ecológica, onde ocorre a transição entre dois ou mais tipos de vegetação. Os limites entre os tipos de vegetação nem sempre são exatos e os contatos se caracterizam por uma mistura ou mosaicos que formam essa transição. Além de desproposital, retirar a proteção destas faixas incorrerá em enorme insegurança jurídica, visto que tecnicamente, na prática, é extremamente difícil estabelecer em campo estes limites. A interpretação vigente é que essas áreas são protegidas pela Lei como Mata Atlântica.
As áreas de tensão ecológica incidem em grandes territórios, em especial nos casos da Bahia, Paraná, Minas Gerais e São Paulo. Neste último, por exemplo, as regiões de contato entre o Cerrado e diferentes formações de Mata Atlântica somam cerca de 23% do estado. São regiões no entorno de cidades como Bauru, Campinas, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e Sorocaba, onde o cultivo de cana-de-açúcar tem forte incidência.
Observada sua especialidade sobre o tema, a Lei da Mata Atlântica deve ser aplicada simultaneamente à Lei de Proteção da Vegetação Nativa. Essa lei é resultado da mudança do Código Florestal, feita em 2012, e prevê vários mecanismos para que os proprietários rurais façam a adequação de seus imóveis. Essas regras são agrupadas no chamado Programa de Regularização Ambiental (PRA), que é definido por cada estado do Brasil.
O PRA define por exemplo como e quais os prazos para que sejam recuperadas as matas ciliares. Ele direciona os mecanismos de apoio, como os Pagamentos por Serviços Ambientais e assistência técnica. Também trata das Reservas Legais, partes de até 20% de cada imóvel nas regiões de incidência do Bioma Mata Atlântica, destinadas à preservação e uso sustentável. Falta regulamentar várias possibilidades de compensação em outros imóveis e também os usos produtivos possíveis nessas áreas. Outro ponto fundamental a ser regulamentado para a aplicação desta Lei é o chamado “marco temporal” da Reserva Legal, estabelecido em seu artigo 68, que define a exigência ou a dispensa de restauração dessas reservas.
Esse ponto é bastante polêmico, com interpretações que a acabam por dispensar várias fazendas da obrigação de ter as reservas. Dependendo da interpretação, por exemplo, o passivo de reservas a ser recuperado em São Paulo pode variar muito, de menos de 200 mil a cerca de 800 mil hectares. E em todo o Brasil pode reduzir em até 50% da área a ser regularizada, onde até 6 milhões de hectares podem deixar de ser restaurados.
Essas regras ainda são objeto de debates, pesquisas e ações judiciais. O fundamento científico pode ser aplicado em outros estados com base, por exemplo, no Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil (MapBiomas) e na Avaliação das oportunidades de restauração de paisagens florestais (ROAM), iniciativa da IUCN que já levantou dados de diversos biomas e estados brasileiros, além de diversos outros estudos sobre levantamento do uso do solo. No caso de São Paulo, o projeto financiado pela agência estadual de pesquisa, a FAPESP, tem o potencial de subsidiar cientificamente a discussão, levando a decisões mais fundamentadas e sustentáveis.
Apesar da possibilidade de se ter um regulamento cientificamente fundamentado e com segurança jurídica na maioria dos estados, o PRA ainda não aconteceu de fato, faltando normativas e instrumentos operacionais de responsabilidade principal dos governos estaduais. Neste cenário de indefinição, propostas de retrocessos normativos são ainda mais prejudiciais.
A combinação da diminuição da abrangência da Lei da Mata Atlântica, somada a uma interpretação permissiva da Lei de Proteção da Vegetação Nativa e à ausência de implantação do PRA – fato recorrente em vários estados – pode reduzir ainda mais a necessária recuperação da vegetação nativa. Neste momento de pandemia, o assunto acaba mais esquecido ainda, mas esse é mais um exemplo da “boiada” que se quer passar quando ninguém olha, reduzindo drasticamente a proteção legalmente conferida através da alteração de instrumentos infralegais.
OBSERVATÓRIO DO CÓDIGO FLORESTAL (http://observatorioflorestal.org.br)
REDE DE ONGS DA MATA ATLÂNTICA (http://rma.org.br)
MOVIMENTO MAIS FLORESTAS PRA SP (https://pt-br.facebook.com/maisflorestasprasaopaulo)
Leia também:
* Os artigos de colaboradores não exprimem necessariamente a opinião de Direto da Ciência, e são publicados com os objetivos de promover o debate sobre a ciência, a cultura, o meio ambiente e o ensino superior e de refletir a pluralidade de ideias sobre esses temas.
Na imagem acima, Mata de transição entre Cerrado e Mata Atlântica em São Domingos do Prata (MG). Foto: Alicedaraujo/Wikimedia Commons.
Siga Direto da Ciência no Twitter e no Facebook.
Você acha importante o trabalho deste site?
Independência e dedicação têm custo. Com seu apoio produziremos mais análises e reportagens investigativas. Clique aqui para apoiar.
Todos os direitos reservados. Não é permitida a reprodução de conteúdos de Direto da Ciência.
Clique aqui para saber como divulgar.
Caso a proposta de alteração do decreto que regulamenta a Lei de proteção da Mata Atlântica seja aprovada, a região da Serra do Espinhaço Meridional (Diamantina/MG e cidades vizinhas) será muito afetada, pois a região abriga uma significativa área classificada como Refúgio Vegetacional (com flora e fauna endêmica associados aos Campos Rupestres), além de possuir áreas de tensão ecológica entre Cerrado e Floresta Estacional.
A região da Serra do Espinhaço (Reserva da Biosfera) atualmente está presenciando o avanço da atividade de exploração de rocha ornamental por diversas mineradoras que estão causando impactos ambientais irreversíveis (tal como a alteração física da paisagem natural) que aliás já pode ser observado através do espaço, portanto a proposta de alteração do decreto reduzirá a restrição e compensação ambiental por supressão de vegetação nativa e facilitará ainda mais a exploração de novas áreas.
Destaca-se ainda que as áreas de Refúgio Vegetacional abrigam extensas Turfeiras e uma cordilheira constituída por rochas fraturadas (Quartzito) tornando-as autênticas “caixas d’água” responsáveis por formar importantes afluentes de água limpas e volumosas às Bacias dos rios São Francisco, Jequitinhonha e Rio Doce, tal como o Rio Paraúna, Rio Jequitaí, Rio Pardo Grande, Rio Cipó, Rio Preto, Rio Araçuaí, Rio Santo Antônio etc…
Apesar da importância socioambiental e aparente imponência das áreas de Refúgio Vegetacional, nota-se que são áreas muito frágeis às ações antrópicas, possuem baixa capacidade de retornar à condição natural após uma alteração/perturbação do meio (baixa resiliência), fato que favorece o crescente aumento de áreas degradadas sem reparação ambiental.
Nesse contexto, a alteração do decreto tende a agravar essa situação indesejável que traz benefícios a poucos e prejuízos gerais às atuais e futuras gerações.
Mais um retrocesso ambiental, lamentável.
Pingback: Organizações criticam proposta de Salles que reduz proteção da Mata Atlântica - Notícias Socioambientais das águas no Brasil